domingo, 23 de junho de 2013

Trajano Ribeiro: “Ele foi o intérprete de nossa rebeldia, de nosso inconformismo”


O telefone tocou, por volta de 11 horas da manhã daquele sábado. Era Brizola.
-Que tal?
-Bom dia Governador. Por aqui vamos indo. E aí como estão as coisas?
- Estamos trabalhando, vamos bem, como vão a Maria e as crianças? Veja, queria que tu considerasses a possibilidades de tirares uns dias aqui em Nova Iorque. Temos muito que conversar e trabalhar.
A partir desse diálogo havido no início de outubro de 1977, iniciamos um período de convivência, riquíssimo para mim. Essa convivência permitiu-me conhecer próxima e profundamente o homem que representou para minha geração o que Getulio representara para a geração de meu pai. Brizola, afinal era o intérprete da nossa rebeldia, do nosso inconformismo com o subdesenvolvimento do Brasil, com a ingerência crescente dos Estados Unidos na América Latina, com as injustiças sociais gritantes, já nos anos 60.
Ele nos levou a resistir ao golpe em 1961, ele nos ofereceu a nossa revolução de 30, da qual meu pai e meus tios haviam participado, cujas histórias não se cansavam de contar. Claro, o Brasil precisava uma nova revolução de 30 e Brizola havia criado as condições para que ela ocorresse, ao mobilizar, organizar e armar o povo contra a ruptura da ordem constitucional, que na realidade significava uma ruptura com as conquistas de 30. Eram os inimigos de Getulio, que não queriam a posse de Jango. Era a velha UDN, entreguista e liberal, incitando os militares a golpear a democracia. Era a luta entre o Brasil senhor de si, soberano, com projeto de desenvolvimento e o Brasil alienado, curvado, submisso e explorado, endividado e dependente.
Ele nos dera isto, a possibilidade concreta de construirmos o Brasil de todos os brasileiros e isto garantiu-lhe um lugar privilegiado no imaginário de minha geração. Não fomos à guerra, prevaleceu a lógica política, mas ele continuou como referência. E mesmo no exílio era o marco, a fonte. Nos períodos que antecediam as eleições promovidas durante a ditadura havia uma revoada ao Uruguai. -Quando não é época de eleição, o pasto cresce na frente da minha porta, disse-me ele uma ocasião, numa das intermináveis conversas que tínhamos, sempre sobre política, com algumas breves lições sobre o manejo do gado e da terra, na sua estância em Durazno, referindo-se ao fato de que nas vésperas das eleições os candidatos acorriam em peso em busca nem que fosse de um conselho.
Mas não eram somente candidatos que o procuravam. Militantes de vários movimentos também o faziam, estudantes, trabalhadores, intelectuais. Íamos lá discutir, informa-lo dos últimos acontecimentos, e, sobretudo ouvi-lo.
Em julho de 1977 estive lá em companhia de alguns companheiros, entre eles o velho Guaranha, como chamávamos carinhosamente o incansável pombo correio que durante os tensos dias da campanha da Legalidade levara a Brizola, em primeira mão, a mensagem contendo a ordem de bombardeio do Palácio Piratini, expedida pelos ministros militares amotinados. O objetivo da viagem era tentar convencer Brizola a escrever um livro. Achávamos que era hora de reinserí-lo no cenário político. Havia um vácuo na política brasileira. As grandes questões nacionais não faziam parte das discussões políticas institucionalizadas. O MDB cingia-se á uma tímida luta pela redemocratização do país e até a luta pela anistia não era enfatizada pelos partidos políticos admitidos. As reformas de base haviam sido esquecidas naquele grande baú dos sonhos frustrados dos povos, cuja guarda a história confia aos oportunistas, sempre dispostos a levantar a bandeira da prudência e que , no caso, estavam mais preocupados em proteger seus mandatos contra a ira da ditadura. Era a hora de Brizola iniciar seu retorno político, achávamos nós, mesmo que a real possibilidade de sua volta ao país estivesse longínqua.
Não podíamos imaginar, àquela altura, que menos de dois meses depois ele seria catapultado de forma inesperada para o cenário político brasileiro, reaparecendo, nem mais nem menos que em Nova Iorque, sendo uma entrevista na Voz da América, seu primeiro ato político após sua expulsão do Uruguai em setembro.
O livro. Queríamos que ele escrevesse um livro. Estávamos todos sentados na sala, após o jantar. O Governador caminhava de um lado para outro, em frente à lareira, acesa para enfrentar o frio próximo de zero. As labaredas projetavam um Brizola enorme e irrequieto nas paredes da sala. Ele falava mais pausadamente do que de costume, refletia em voz alta sobre nossa proposta. De repente parou e disse: -Acho que não devo escrever o livro. É arriscado. Vejam o que aconteceu com o Perón... -e sem esclarecer a que se referia prosseguiu:
-É melhor eu escrever umas cartas para o Seu Guaranha. Nelas eu vou expondo alguns pontos de vista sobre os problemas. Vocês reproduzem e distribuem. É mais prático, mais ágil e posso sempre abordar questões atuais. O livro cristaliza muito.
Voltamos ao Brasil com a convicção de que ele estava certo e que teríamos que montar um bom sistema para distribuir as cartas que seriam escritas, sem que os organismos de segurança atrapalhassem. Menos de dois meses depois dessa reunião em sua estância, em Durazno, ele era expulso do Uruguai sem chegar a escrever a primeira carta.
O senso prático e a objetividade de Brizola, certamente responsáveis pelo sucesso de suas administrações no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, especialmente na consecução de metas que ele entendia prioritárias, o impulsionava também em decisões pessoais e foi o que, sem dúvida, levou-o a hospedar-se no Hotel Roosevelt em Nova Iorque. - Aqui tenho a certeza de conviver com a nossa gente, aqui se hospedam as tripulações da nossa Varig. Eles me trazem os jornais brasileiros todos os dias e também erva mate e outras coisas do Brasil, disse-me ele quando chegamos no hotel, vindos do Aeroporto.
O Hotel Roosevelt, localizado junto à estação Grand Central é um prédio antigo, com apartamentos confortáveis e na época operava com diárias módicas. Despedimo-nos na recepção e ele me disse: - Descansa um pouco que depois teremos um almoço de trabalho. E assim foi. Por volta de meio dia e meia o telefone tocou, - passa aqui no meu apartamento, assim cumprimentas a Neuza que quer te ver e está ansiosa por notícias.
A caminho do almoço ele foi me dizendo:
- Sabe, aqui tem um restaurante de comida rápida muito bom. Eles tem um sanduíche de carne chamado Wopper muito interessante, o nome do restaurante é Kings Burger. Seguido almoçamos lá. - E lá fomos nós para o Kings Burger comer Wopper que ele fazia acompanhar de um suco e café. Falou-me muito sobre a cidade que o acolhera, sobre a maneira de ser dos novaiorquinos.
Depois fixou o olhar através da grande vitrine ao lado da nossa mesa no curto horizonte que a paisagem urbana permite e ficou alguns segundos em silêncio. Depois disse-me  -Trajano, temos pela frente um trabalho que não é sopa. Acho que as coisas agora se abriram e eu me sinto no dever de reorganizar o Trabalhismo, reorganizar o nosso partido. Tu tens que procurar algumas pessoas. Tu vais ter que te concentrar nisto. Eu vou te dar os nomes. Tu tratas de localiza-los e conversar com eles. Se for o caso, põe em contato comigo pelo telefone. - Senti naquele momento um misto de satisfação e angústia. Satisfação por ter sido honrado com uma missão tão relevante e angústia pela grandeza do desafio e a necessidade de vencê-lo.
 Naquele momento pensei no privilégio que eu estava tendo. Pensei nos meus companheiros de lutas políticas no colégio e na universidade, nos companheiros de lutas pós-universidade.
Senti-me representando a todos e comecei a achar que havia valido a pena a nossa luta. Finalmente abria-se uma perspectiva concreta de influirmos nos destinos do nosso país e do nosso povo. Nenhum sacrifício tinha sido em vão. Voltei dez dias depois para o Rio de Janeiro e comecei a cumprir a tarefa, com humildade, mas sem desanimar. Foi difícil. Alguns diziam ironicamente - Brizola?  Sim, Brizola, e os céticos tiveram que morder a língua.
(Depoimento em 2005)

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