sexta-feira, 28 de junho de 2013

Flávio Tavares - "Brizola foi um estadista"

Das muitas histórias que Leonel Brizola me contou no exílio, em meio aos mútuos segredos que a luta de resistência à ditadura nos levava a confessar um ao outro e a esquecer no instante seguinte (e, assim, nada revelar jamais, caso nos prendessem e torturassem), uma delas permanece intacta em minha memória.
Ele tinha pouco menos de dois anos de idade, morava no interior de Carazinho, no campo, quando divisou o cavalo em que o pai tinha saído de viagem no dia anterior, naquele final de 1923.
- Lentamente, o cavalo se aproximou, cansado, cabeça baixa e, passo a passo, parou junto à casa. Minha mãe abriu a porta e gritou, num grito espantado de dor, mais grunhido do que outra coisa, em berros cada vez mais fortes. Tive medo mas não chorei, e me agarrei no vestido da minha irmã mais velha para me proteger daqueles gritos. Minha mãe gritava e eu não via nada. Só o cavalo parado ali. Parado e triste.
O menininho Leonel não podia entender que a mãe gritava exatamente porque também não via nada. O cavalo voltara sozinho e sem ninguém, dando o aviso de que o cavaleiro fora morto e o cadáver estava lá longe, no campo. Eram os dias seguintes à Revolução de 1923, já com o armistício assinado entre os rebeldes maragatos e o governo, mas a paz ainda não voltara aos campos e o ódio da guerra continuava pelo Rio Grande afora. O pai, um maragato, era o cavaleiro e fora assassinado por vingança. A triste vingança dos vencedores sobre os vencidos.
- Aqueles dias foram terríveis mas minha mãe nos ensinou a não recorrer à vingança, Félix! - concluiu Brizola, chamando-me pelo nome de guerra que ele próprio me dera e que usávamos em todos os momentos da clandestina resistência armada.
Cumplicidade
Recordo o episódio agora, ao evocar o que ele foi para buscar defini-lo. Os adjetivos que definem a personalidade de Brizola são muitos, mas para explicar porque se transformou em líder e porque sobreviverá na História, bastam dois: audácia e paixão.
A partir de 1952, nos meus 18 anos, ele ainda deputado estadual, a nossa convivência foi sempre próxima, mesmo nos breves tempos em que as posições políticas nos separaram, como em 1955, na eleição que o levou à prefeitura de Porto Alegre. Em 1961, na campanha pela posse de João Goulart na Presidência da República - que ele organizou e comandou -, permaneci a seu lado (como muitos outros) durante 24 horas ao dia, ao longo de uma semana, revólver à cintura e sem jamais dormir. Pela primeira vez, vi então como a sua audácia brotava da paixão, transformando a palavra na luz de um relâmpago contínuo que jamais se apagava. A sua palavra, que a Rádio da Legalidade difundia pelo país inteiro, mobilizou multidões, derrotou o golpe militar e Jango pôde voltar ao Brasil para assumir a Presidência.
Só após o golpe militar de 1964, nos anos da luta de resistência à ditadura, porém, fui conhecê-lo de corpo inteiro. Primeiro, ele no exílio no Uruguai e eu em Brasília, viajando incógnito para, na clandestinidade, tramar a conspiração nos tempos do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), do qual ele era o comandante político e eu o coordenador operacional do Planalto Central e norte do Brasil. Conheci, então, o minucioso Brizola que me ensinou como me comunicar por uma seqüência de números e letras, por meio de uma "palavra-chave", indecifrável até pelos melhores decodificadores criptográficos. Mais tarde, concluída e abandonada a etapa da resistência armada à ditadura, eu próprio fui também um exilado. E em Lisboa, de 1978 a 1979, chegamos a morar no mesmo hotel, nos dois anos anteriores à anistia política que nos fez retornar ao Brasil.
Tive, então, novos descobrimentos: além da antiga cumplicidade da luta armada, houve a intimidade familiar, com a sua netinha Laila e meu filho Camilo brincando juntos e se misturando às crianças portuguesas, sob o incentivo de Neuza Goulart Brizola, que funcionava como avó de ambos.
Ao contrário do que se pensava no Brasil, percebi que Brizola era um ouvinte atento, que prestava atenção a tudo o que dizia o interlocutor, mesmo parecendo desinteressado. Foram os anos em que "o grupo de Lisboa" o ajudou a abrir-se às novas correntes do socialismo não-autoritário, para que "o novo trabalhismo" não ficasse estancado no getulismo, por maior estadista que tenha sido Getúlio Vargas. Nesse período, o português Mário Soares e o alemão Willy Brandt entram na vida de Brizola e, com paixão, ele descobre Marx, mas sem adotar os padrões do marxismo rígido de uma época ainda dominada pela hegemonia doutrinária da União Soviética em boa parte da esquerda.
Lembro-me da paixão com que contou que Willy Brandt o levara a conhecer a casa onde Marx nasceu na Alemanha, perto da fronteira da Holanda:
- Tudo intacto, talvez tenha sido recomposto, mas até os livros de Marx lá estão! - disse-me no seu pequeno apartamento do Hotel Flórida. Nesse dia de 1978, em Lisboa, chamou-me outra vez de "Félix", o antigo codinome que ele me dera em 1965 em Montevidéu, e que já não usávamos há anos.
Estranho, no final de 1979, na derradeira reunião com o "grupo de Lisboa" antes de que viajasse a Nova York para, de lá, regressar ao Brasil, outra vez me tratou pelo antigo "nome de guerra", totalmente em desuso. Tão em desuso que, depois, nos 24 anos de retorno ao Brasil permaneceu esquecido.
Neste 2004, porém, na noite de 31 de maio, Brizola compareceu a uma livraria de Ipanema, no Rio, para a sessão de lançamento do meu livro, o seu último ato público (dois dias depois foi ao Uruguai e de lá voltou infartado). Algo estranho ocorreu. Ele, que antes era sempre o último a chegar, chegou antes de mim e foi recebido pelo meu filho Camilo, "o mágico", como ele o chamou, lembrando-se das brincadeiras de criança em Lisboa. Quando apareci e fiz a pergunta clássica de "como vai?", mostrou que a velha paixão continuava:
- Olha, Félix, nesta altura da vida, ando meio cansado, mas até estou bem no cansaço, pois significa que sigo batalhando e não me calo.
Todos estranharam o tratamento de "Félix" e eu tive de explicar que não era um lapso da idade, mas uma reminiscência dos tempos difíceis. Três horas depois, na despedida, Brizola outra vez me chamou de "Félix" e o tomei como amistosa deferência. Só agora, vejo que era uma forma inconsciente de despedida. O comandante se despedia do soldado, com a senha secreta de combatente.
Ele é insubstituível até no jeito terno da despedida. Não apenas na forma de fazer política, com franqueza, dizendo o que pensava, sem farisaísmos nem simulações, sempre com uma solução concreta ao que apontava com a palavra. Às vezes, com isso até perdia votos, pois nunca foi um caçador de votos, nem um político de palavrório oco.
Foi um estadista.
(Texto publicado na Zero Hora em 29/6/2004 sob o título "Codinome Félix")

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